O
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Bar Green
Man estava adornado com enfeites espalhafatosos e animados.
Abóboras iluminadas por velas eram as fontes de luz que davam um ar
aconchegante ao lugar. Tigelas de cristais, repletas de doces de formas
engraçadas, estavam a disposição nas mesas espalhadas pelo salão do bar.
A garçonete de curvas
voluptuosas corria de um lado ao outro alegremente, equilibrando a si mesma em
altos saltos agulhas, enquanto fazia malabarismo com uma grande e pesada
bandeja de prata, com várias canecas enormes de Stout, a cerveja escura
irlandesa, cuja espuma cremosa transbordava farta pelas bordas.
Após um ano de intensas lutas
contra as forças das Trevas, que custou muitas vidas e muito sofrimento, o Povo
Místico voltava a viver uma vida tranquila, sem medos e sem receios. As forças
do mal foram dissipadas e a Paz instaurada. Portanto, tudo agora era motivo de
comemoração! E a comemoração era ainda maior quando a ocasião era muito
especial. No caso, não havia data comemorativa mais importante para o Mundo
Magnífico do que o All Hallows Eve, a Noite de Todos os Santos.
Neste primeiro ano sem a
ameaça das Forças do Mal e seu Exército das Trevas, homenageavam-se os mortos,
especialmente aquele que morreram na guerra, com respeitosa alegria.
Alegria, sim, pois a morte
faz parte da vida, e graças aos sacrifícios de muitos, milhões agora podem
continuar a viver e perpetuar a força daqueles que deram suas vidas em prol de
algo tão valioso quanto a Paz e a Liberdade. Lastimar-se seria desonrar aqueles
que entregaram suas vidas para que as vidas de outros prosseguissem
harmoniosamente. Havia, sim, a saudade, mas a alegria era uma silenciosa
obrigatoriedade para honrar e agradecer aos mortos por seus sacrifícios.
Já passava da meia-noite e
a festa não dava mostras de terminar. As pessoas dentro do Green Man cantavam
em coro desafinado, riam, gargalhavam, algumas dançavam. Um irlandês de juba
vermelha, tão alto quanto largo, sobraçava o outro mais mirrado, e ambos, muito
entusiasmados, puxavam o coro com as faces rubras e os olhos estatelados devido
a algumas dezenas de canecas de cerveja. O bar era a materialização da alegria.
As pessoas se divertiam de forma saudável, felizes e aliviadas por poderem
retornar às suas vidas, comemorando cada segundo de Paz que lhes fora concedido
após anos de segregação racial e liberdade tolhida e vigiada.
Mas, para ela, toda
essa alegria já havia se excedido... Ninguém percebera sua repentina desolação.
Despediu-se silenciosamente de todos, com um sorriso triste no rosto cansado,
correndo seus olhos dourados por aquela turba de boêmios, já com a mão na
maçaneta da porta de saída.
Ganhou a rua deserta em menos
de um segundo. As risadas, falações e músicas ficaram abafadas quando a porta
bateu às suas costas. O ar estava álgido. Ainda era Outono, mas as estações
nunca mais seriam as mesmas após a guerra que violentou até mesmo a natureza da
Terra. Uma rajada de vento a fez tremer e se encolher, balançando seus cachos
avermelhados que caíam soltos às suas costas. Uma névoa se formava com sua
respiração.
Maeve ergueu os olhos para
o céu parcialmente encoberto, onde ainda era possível ver uma formosa e
imponente lua cheia e algumas estrelas que cintilavam como diamantes ao fogo.
As nuvens finas, que cobriam boa parte do céu noturno, anunciavam uma chuva
igualmente fina que, provavelmente, se condensaria em cristais de gelo com a
atmosfera anormalmente fria para aquela época do ano.
O luar intenso iluminava
bucolicamente uma das principais cidades do Mundo Magnífico, que fora
totalmente destruída e que agora gabava-se de seu renascimento como se jamais
tivesse tombado alguma vez. Os lampiões das calçadas brilhavam como lágrimas na
noite, um vapor produzido por seu próprio calor pairava e se dissolvia no ar.
Maeve, de cabeça baixa e
braços cruzados com força sobre o peito, caminhava decidida, em passos firmes.
Seus sapatos baqueavam os paralelepípedos. Seus passos e sua respiração forte
juntavam-se aos sons naturais da noite, ao vento que cortava as copas de
árvores e telhados. Nuvens lanosas passavam apressadas sob a lua, criando
sombras movimentadas pelo caminho.
Sem se importar com o frio
que a castigava, subiu com perseverança a colina que começava após o término
das construções de tijolinhos maciços, que caracterizavam a cidade que se
parecia com um vilarejo medieval. Os lampiões se escasseavam e o caminho
começava a ser iluminado apenas pelo luar. Apesar do céu ter sido encoberto por
nuvens de chuva, a lua cheia jogava seus fortes raios sobre aquele manto lanoso
que refletia e potencializava sua luz, tornando a noite quase tão clara quanto
o amanhecer do dia.
Do alto da colina do pequeno Castelo, podia se
avistar toda a extensão da cidade mística e sua floresta densa. Correndo os
olhos pela área a sua volta, Maeve via algumas fogueiras¹ crepitando ao longe,
nas pequenas propriedades rurais da cercania urbana. Olhou para trás, para o
vilarejo que podia ser avistado quase na sua totalidade daquela colina. Viu sem
alardes vultos de luz prateada que deslizavam pelas calçadas e ruas desertas.
Já não era mais possível ouvir qualquer ruído do Green Man.
O vento gelado que soprava
insistentemente era o único a ressonar por ali. Maeve, contemplativa, voltou-se
para frente, abandonando a cidadezinha às suas costas.
O vento frio fazia ir e vir
os seus cachos. Olhava a imensidão escura que se desnudava à sua frente. Ela
estava distante, absorta em seus pensamentos, mal ouvindo os passos mansos e
cautelosos que se aproximavam, amassando a grama quase seca pela geada temporã.
Sentiu que alguém parou próximo. Um calafrio percorreu seu corpo e que não foi
provocado pela temperatura que caia vertiginosamente. Sua respiração se alterou
e, sabendo que de nada lhe adiantava fugir – pois, por mais que quisesse, não
poderia fugir de si própria, de seus sentimentos, de seu coração... – com certo
temor, virou-se por sobre o ombro e o calafrio gelou seu peito.
— Michael...
Michael Collins apenas deu
um leve sorriso sarcástico, uma de suas marcas registradas, desviando seus
olhos para a ponta de seus sapatos. Cabelos ruivos e longos caiam por seu
rosto, ocultando parcialmente sua fisionomia abatida. O ex-revolucionário do
Mundo Magnífico estava mais magro e pálido do que de costume.
— Eu não me importaria de
passar toda a noite aqui, mas prefiro não ser mais ignorado por você, Maeve...
— Eu não... – Maeve
interrompeu-se, voltando-se tristemente para o horizonte noturno.
O silêncio dela o machucava,
ele se permitia admitir isso. A sua vida inteira fora forjada para derrotar as
Trevas custasse o preço de sua alma se necessário, e jamais poderia permitir
que qualquer coisa ou até mesmo alguém desviasse sua atenção e suas energias
desse objetivo. Agora que tudo havia se acabado, ele se permitia viver aquilo
que seu coração desejava...
Olhou para o céu recoberto
por nuvens que se tornaram densas, ocultando a lua cheia que ainda refletia
seus raios sobre elas, deixando a noite clara. O frio se intensificou, fazendo
com que sua respiração formasse uma neblina tênue. Logo começaria a nevar.
— O senhor não quis
participar das comemorações? – Perguntou Maeve, sonsamente, apenas para quebrar
aquele silêncio que a incomodava.
Collins voltou sua atenção
à mulher. Perdia-se em divagações enquanto observava Maeve, que parecia se
proibir de lhe dirigir um olhar que fosse. Passados alguns minutos, achou por
bem responder a pergunta dela.
— Eu não seria bem vindo...
Mesmo que tudo tenha se esclarecido, jamais serei perdoado por ter levado tão
longe tudo aquilo que o nosso líder planejou por tantos anos...
— Porque se a morte é a
última opção desesperada, então é possível tomar outras atitudes e tentativas.
A morte é o fim, não há segunda chance! – Maeve respondeu, como se a completar
os pensamentos de Collins, com um tom rancoroso em sua voz.
Ele inspirou profundamente,
demonstrando todo o seu pesar. O preço de sua extrema lealdade ao líder
intelectual da Força Revolucionária e herói do Povo Místico, William Lamport,
seria a cruz que carregaria por muito tempo em solo acidentado. Sabia disso e
não buscaria modificar essa consequência que previu e aceitou. Porém, jamais
previu que seu coração reclamaria pelo perdão de alguém.
— Já falamos sobre isso...
carregar para sempre o peso desse ato é o pior castigo que eu poderia ter! Mas
a guerra requer grandes e dolorosos sacrifícios. O de Lamport foi sua vida,
o meu é o assassinato dele!
Por um momento, ao ver
Maeve passiva, Collins pareceu se desesperar e sua voz saiu próximo de um
suplício.
— Você conhece a verdade,
Maeve... a entende... por que é tão difícil de aceitá-la?!
O céu tornou-se ainda mais
branco quando a chuva fina começou a cair, mas o ar frio era tanto que
condensava as gotículas muito antes de elas tocarem o chão. Então, delicados
flocos de neve caíam lentamente e logo tudo se tornou esbranquiçado. Sobre as
duas figuras solitárias no alto da pequena colina, os flocos começaram a se
acumular em seus cabelos e ombros.
— Todos sabem da verdade...
foi com muito custo que todos a entenderam... mas, aceitar?!
Francamente, Sr. Collins, isso é quase inconcebível!
— Dói ouvi-la me chamar com tanta polidez, sabia? –
Collins inquiria num tom misto de tristeza e zombaria. —Eu realmente não me
importo com o que todos pensam de mim, mas você...
Maeve se irritou com aquele
“mas você”, virando-se abruptamente em direção à cidadela. Lutava contra seus
desejos que se opunham às suas convenções. Uma luta dolorosa, mas o ‘certo’
deveria prevalecer, sempre!
— Isso é loucura! Tudo foi
uma loucura! E o que aconteceu entre nós não foi diferente! Esqueça tudo isso!
Aquilo foi um erro! Um erro!
A moça, em passos largos,
tentou fugir, descer a colina rumo à rua de pedras e lampiões gotejantes.
Precisava sair o quanto antes dali! Não permitiria que sua mente e sua razão
fossem dominadas por emoções tolas que teimavam em lhe contradizer, mandando-a
que ficasse, que baixasse completamente a fortaleza que guardava seu castelo de
atitudes certas, lógicas e ponderadas. Não poderia amar um homem que fora o
assassino de William Lamport, mesmo que sob a lealdade inquebrantável que
Collins estava preso ao líder revolucionário!
Seu coração perdoava e
entendia, mas sua mente não conseguia aceitar tal fato! Em ação rápida e
furtiva, Collins impede que Maeve prossiga, segurando-a pelo braço esquerdo.
Temia machucá-la com a força que empregava, mas não poderia correr mais uma vez
o risco de perde-la novamente, de deixá-la fugir. Não lhe restava mais tempo
para isso. A moça virou-se assustada, mas sua expressão de quase desespero se
esvaeceu ao encontrar clemência e doçura naqueles olhos castanhos que
costumavam ser tão frios, como se não pertencessem a um ser vivo.
— Essa maldita guerra já
tirou demais de todos nós! Perdemos demais!
Collins trouxe Maeve para
junto de si, enlaçando-a com os braços. A moça não reagiu. Apenas continuou a
olhar em expectativa, como que hipnotizada.
— Chega de perdas! –
Sussurrou Collins em sua voz grave.
O sussurro foi calado por
um beijo suave e calmo. Collins temia piorar a situação dessa forma, mas
necessitava provar seu amor por Maeve e receber sua absolvição. Ele precisava
alcançar a sua paz e só poderia fazê-lo através de sua amada. A moça relutou e
lutou temporariamente. Não queria ceder ao beijo. Mantinha-se rija, ainda sustentando
desesperadamente as muralhas de sua fortaleza. Apesar da neve fria que caía
cada vez mais intensamente, fazendo a paisagem noturna ter um aspecto
fantasmagórico, o calor da emoção os envolvia como um manto quente, feito um
abraço invisível.
O vento que soprava no alto
da colina trazia consigo uma melodia longínqua, baixa, o farfalhar da
vegetação. Conforme a sensação de tempo e espaço se esvaecia para Maeve, e o
calor invisível intensificava seu abraço, a moça foi cedendo finalmente aos
apelos de seu coração, entregando-se aos beijos e carinhos de Collins.
Suas últimas defesas caíram
por terra e Maeve enlaçou com força o pescoço de Collins, escondendo seu rosto
no ombro dele que, por sua vez, num suspiro de alívio, intensificou ainda mais
seus braços em torno do corpo esguio dela, perdendo-se pelo emaranhado de
cachos avermelhados e absorvendo todo o perfume que conseguia; aquele mesmo
perfume floral que experimentou por uma única vez, por uma noite que poderia
ter durado uma vida inteira, mas cujas horas se passaram como segundos...
Porém, essa única noite de amor foi o suficiente para firmar para sempre em sua
alma o seu sentimento por Maeve e nem a batalha final da insana guerra foi
capaz de apagar o mínimo que fosse daquela impressão que carregaria pela
eternidade.
— Eu te amo demais,
Michael... – Maeve sussurrava com voz embargada, mantendo-se firme, enlaçada ao
pescoço de Collins, como a temer que ele se fosse dali como a pequena neblina
dos lampiões. — Eu entendo o porquê das atitudes que tomou... entendo o fardo
que carregava... entendo que não havia escolha para você... eu entendo que você
havia se tornado escravo de um pacto... eu te perdôo, Michael... eu já
havia te perdoado há muito tempo!
Collins suspirou
exasperado, mas aliviado. Afastou-se apenas um pouco de Maeve para poder
encará-la, enxergar dentro da alma dela através dos olhos dourados que luziam
pelas lágrimas. Suas defesas também haviam caído por terra e sua alma nunca
esteve tão visível através de seus olhos castanhos que, ironicamente, mostravam
uma grande fonte de vida, como jamais estiveram antes.
— Obrigado, Maeve... muito
obrigado...
Tentando em vão conter seu
pranto, Maeve respondeu em voz chorosa, quase se desesperando;
— Não! Por favor... não
diga isso!
— Eu preciso... – respondeu
Collins, com uma expressão plácida e feliz, que Maeve presenciou apenas uma
única vez... na noite de amor que tiveram, antes da última batalha, quando
descobriu que o assassinato do líder fora um plano arquitetado pelo mesmo.
— Você não pode! Não pode ser
assim! – Dizia já em prantos, agarrando com força as mangas da veste negra de
Collins.
— Concordo... não deveria
ser assim, mas...
Collins se silenciou com um
novo beijo, sentindo o gosto levemente salgado das lágrimas da mulher, que
caiam em seus lábios. O vento soprava mais insistentemente. Suas veste e seus
cabelos se misturavam como se bailassem. Os flocos de neve caiam em espiral,
lançando pequenos brilhos difusos como se portassem luz própria.
— Obrigado, Maeve...
obrigado por me conceder o descanso para minha alma, por me conceder a paz que
eu buscava...
Collins afastou-se sem
desviar seus olhos dos de Maeve, que permanecia prostrada, imóvel, apenas suas
lágrimas escorriam abundantes e silenciosas por sua face corada. Ela levou suas
mãos ao peito, como se quisesse conter as batidas dolorosas de seu coração.
— Eu te amo, Maeve... e o
que sinto não mudará aqui deste lado... obrigado por permitir que isto
seja a única coisa que levarei deste mundo...
Com um sorriso singelo,
Collins esvaeceu-se como uma luz que se apaga lentamente. Sua forma se
desmanchou em milhares de pequenos pontos brancos e luminosos, subindo ao céu
através da luz que surgia por uma brecha nas densas nuvens de chuva, formando
um espiral que se confundia com os flocos de neve que ainda caiam.
Somente quando a luz
finalmente se apagou e o céu voltou a ser encoberto por nuvens compactas, que
Maeve deixou-se cair de joelhos no solo forrado pela neve que refletia a tênue
claridade do céu. Suas lágrimas escorriam de seu rosto e formavam pequeninos
côncavos na neve que derretia ao contato morno. O vento começava a diminuir sua
intensidade e a nevasca a ceder, mas ainda os flocos de neve brincavam se
espalhando leves pelo ar frio. Ao longe, na cidadela e no vale, luzes prateadas
surgiam e evaporavam, piscavam como vagalumes perdidos na imensidão noturna.
Samhain, o
Dia das Almas... era 31 de Outubro, o primeiro Halloween após o fim da
guerra entre Luz e Trevas. Muitas vidas preciosas se perderam. Mas a Paz fora
instaurada tanto aos que ainda
permaneciam na Terra quanto àqueles que partiram. E Michael Collins finalmente
conseguiu a redenção que tanto buscava e que apenas lhe fora possível a Paz
através da luz de Maeve.
Fim
Escrito
em 2005. Remasterizado em 2010.
O conto Samhain está presente na coletânea recém lançada "Romances em Fragmentos", que também foi publicado na antologia Beijos & Névoas, em 2010.
Para saber mais sobre o livro, acesse:
Série Snake Stories
Clube de Autores
O conto Samhain está presente na coletânea recém lançada "Romances em Fragmentos", que também foi publicado na antologia Beijos & Névoas, em 2010.
Para saber mais sobre o livro, acesse:
Série Snake Stories
Clube de Autores
2 comentários:
Esse conto é muito lindo, nos remete ao universo dos livros de fantasia para jovens adultos. A série "Snake Stories" é muuito boa. O pessoal precisa conferir!
\º/
Minha fada madrinha! Só tu mesma!
Essa história, nos bons e velhos tempos de Snake, conseguiu arrancar algumas lágrimas das leitoras... que pena que hoje já não temos leitoras como naquela época... o pessoal parecia que gostava mais de ler do que agora.
Obrigadão pelo apoio, Jo!
Bjoxxx!
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